domingo, 16 de fevereiro de 2014

Pelo direito de ser família pelo afeto


O álbum de família modificou. Se o formato pai, mãe e filhos dominou por décadas o modelo familiar brasileiro e o fez a única forma legítima de família, os números das pesquisas atuais divulgadas pelo IBGE parecem revelar que quase metade dos brasileiros convive em modelos familiares diferentes dos “tradicionais”. Com a ausência de pelo menos um dos pais, as famílias se mostram cada vez mais plurais, com a inserção de avós ou tios criando as crianças, uniões homoafetivos, casais sem filhos ou mesmo grupo de amigos que por escolha pessoal, e não econômica, resolvem dividir a vida.

Mas tem gente na Câmara de Deputados querendo rever isso aí. Lutar pelo que ele chama de “sobrevivência da família”. O deputado Anderson Ferreira resolveu fazer um projeto de lei para criação do Estatuto da Família, onde define que família deve ser considerada como o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher. Segundo o mesmo, as rápidas mudanças ocorridas na sociedade vêm alterando esse “curso natural” e “tradicional” da família.

Mas o que seriam essas mudanças rápidas da sociedade? O direito conquistado pelas mulheres de não viver em uma relação obrigada por padrões sociais para se intitular “mulher de família”? A liberdade em se relacionar com as pessoas e constituir famílias nutridas pelo afeto e não por normas sociais antiquadas? 

Parece que estamos caminhando para a construção de famílias em que a qualidade das relações é absurdamente mais importante que as convenções sanguíneas. Porém, para os defensores ferrenhos do patriarcalismo, isso acaba sendo motivo para levantar bandeiras a favor dessa tal de “sobrevivência familiar”. Afinal, não dá para acreditar que novos modelos ganhem voz dentro dos lares brasileiros, né? Ou pior, que pessoas do mesmo sexo, unidas pelo afeto, devam ter direitos familiares assegurados.

Essas mudanças já estão presentes no novo código civil. Família abrange agora tanto o casamento, quanto as uniões estáveis – que desde 2011, são reconhecidas para casais formados por indivíduos do mesmo sexo, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, a palavra “pessoa” passou a integrar a lei no lugar do termo “homem”, como uma superação à desigualdade promovida pela linguagem de antes e, por que não, uma demonstração de que o poder familiar não reside mais nas mãos patriarcais.

Em relação às uniões homoafetivas, a multiparentalidade define bem essa nova forma de família. No registro de nascimento, a criança pode ter mais de um pai ou mais de uma mãe. Essa nova formação familiar é o que chamam de “parentalidade socioafetiva”. Mais do que o caráter biológico, o elo sócio-afetivo deve ser o fator importante na formação de um ser humano e social e na manutenção do espaço familiar, com a defesa dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.


A diversidade de constituições familiares – seja com a presença de filhos ou não – é uma conquista social que precisa ainda de luta por sua garantia. O propósito da composição familiar por meio do amor, das afinidades, da cumplicidade e do desejo de querer bem deve ser o norte social para essa sobrevivência familiar. Mas o desejo de negar esses direitos aos gays acaba viabilizando a criação de projetos como esse, que infringe o direito de outras tantas famílias, como as de pais solteiros ou aquelas que cito logo no começo do texto.

Quanto ao senhor Anderson Ferreira, me cabe o lamento pela luta de definições que vão de encontro ao desenvolvimento de bens tão mais preciosos. Os verdadeiros defensores da sobrevivência familiar devem lutar pela tolerância e pelo respeito. Enquanto não soubermos entender que a qualidade das relações, o respeito pelo espaço e pela voz do outro e a fraternidade humana fazem parte do que há de mais precioso no que chamamos de família, ainda viveremos em comunidades mentalmente feudais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

 






Theme desenvolvido por J. Santiago