quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

TRANSforme sua opinião


Na verdade, nunca houve esse lance de descoberta. Eu sempre soube, apesar das incoerências que o “ser biológico” em detrimento da minha condição social e cultural me impôs. Incorporei assim um papel andrógino durante pelo menos 19 anos. Desde a infância, as evidências disso, que para muitos ainda é considerado um “tabu”, já estavam presentes até o momento em que pude compreender melhor o que é identidade. Pela diversidade que envolve o mundo trans e os papéis sociais, não posso afirmar que todos os transgêneros nascem prontos, mas garanto que identidade não é escolha.

Quando criança, eu detestava aquelas coisas que as mães adoram colocar na cabeça de suas filhas para que fiquem parecendo uma árvore de natal, e foi nessa fase que eu comecei a expressar a minha identidade. Houve vários episódios desagradáveis decorrentes dessas incoerências. No meu mundo de restrições, criei ódio pela cor rosa e invejava os brinquedos que os meus primos ganhavam. Passar o Natal na casa dos tios era um tormento. Os meninos sempre levavam os melhores brinquedos, apesar de eu não ter tido apenas brinquedos que fossem só bonecas e ursos. 

Foto de Milena Palladino
Outro fato foi quando fiquei trancado pelado no meu quarto e só poderia sair se estivesse usando vestido. Fiquei preso o dia todo sem direito a almoço. Depois disso, nunca mais fui obrigado a vestir roupas de garotas, até eu arrumar uma imensa dor de cabeça para minha mãe quando fui estudar na Escola Adventista, onde a calça era parte do uniforme obrigatório dos garotos e saia das garotas. Com muita insistência consegui ser a exceção da escola. Quando meu pai quis colocar minha irmã e eu na natação, recusei, criei desculpas, disse que tinha hidrofobia e que não gostava de biquíni, apesar de ter ganhado dois pares e nunca ter usado.

O meu melhor amigo na infância foi meu vizinho e colega. Quando não era bola, era xadrez, dama, bola de gude ou games. Eu adorava ouvir gente mais velha falando de política, economia ou jogo de futebol, mesmo que não entendesse bem do que se tratava. Minhas melhores companhias foram os garotos. As conversas das meninas (sem querer ofendê-las) sempre me foram enfadonhas. No começo da adolescência, por eu usar coletes ou duas camisas numa cidade de clima quente, passei a visto como uma “pessoa estranha” para os garotos e as patricinhas. Eu tinha os meus motivos apesar de ninguém entender. Dessa forma, nunca fui o tipo “normal”.

Quanto aos relacionamentos, tive que fazer o meu “papel social” com as garotas do colégio. Inventei um namoro à distância para ter assunto, fiz até blog e muita gente acreditou. O bom era que eu podia ficar bem próximo das garotas, que eram meus amores platônicos – tive quatro deles! Após o meu batismo na igreja, tentei ficar com garotos e me “adequar à normalidade”.  O meu primeiro namoro durou menos de 24 horas. Resultado: nada deu certo, pois este circo me incomodou bastante. 

Tirinha de Laerte sobre transfobia

No meio disso tudo, me identifiquei com os melhores amigos que eu poderia desejar, pessoas que como eu buscavam orientação, tanto pela identidade sexual, quanto a de gênero, no meu caso. Nesse momento, ganhei uma cópia da série “The L World”, que abriu a minha mente. Passei por poucas e boas e foi na fase mais difícil da minha vida. Ganhei apelidos nas ruas, arrumei briga e minha família, muito conservadora, me via com os piores olhos possíveis. Vivendo no interior, onde as pessoas se ocupam de assistir a novelas e cuidar da vida alheia, perdi amigos, perdi minha família.

Cresci no berço da Igreja Adventista do 7º Dia e por lá mantive as crenças que me foram impostas até os meus 17 anos, quando fui capaz de questionar tais valores. Em 2008, aos 19 anos, realizei com ousadia o sonho de sair do interiorzinho para estudar Engenharia de Produção. Foi quando a reviravolta começou. O bullying entre colegas e professores não era algo novo para mim, só mudou de espaço. Tive que quebrar aos poucos os meus estigmas e limites culturais impostos por uma educação inferior e dogmática. Vivi por muito tempo fora dos padrões e de tudo. Como disse o João Nery: "Não era hétero, não era homo, era trans. Mas o que é ser trans? Eu não sabia. Eu só era diferente. Precisava me reinventar".

Colação de grau em Engenharia de Produção

Só em 2010 comecei algumas mudanças que, pouco a pouco, passaram a acontecer no meu dia a dia. Confesso que levei muito tempo para expor esta condição aos amigos e familiares. Primeiro, por se tratar de um processo de autoconhecimento, aceitação e reconstrução de uma identidade que há pouco era desconhecida. Tudo isso levaria a muitas perguntas e, naquela época, nem eu mesmo era capaz de responder. Segundo, eu poderia ter problemas para concluir a graduação. Preferi evitar que houvesse algum tipo de atraso na minha formação ocultando minha identidade. Conclui a graduação no final de agosto do ano passado e em outubro fiz um tipo de notificação geral no Facebook, para que eu pudesse, de alguma forma, “explicar” a todos minha identidade de gênero e exigir o tratamento apropriado. 

Hoje eu estou em fase Pré-T e minha meta é buscar, de alguma forma, me inserir no mercado de trabalho, sendo reconhecido como homem trans, mesmo que seja um trabalho público, além de iniciar o tratamento hormonal ainda este ano. Minha vida não se trata de descoberta ou coragem, e sim, de um encontro interior. Não devemos temer os que nos julgam e não nos aceitam só porque hoje você é negro e amanhã branco (a exemplo do Michel Jackson), ou porque você nasceu mulher e depois se tornou homem. Quem realmente se importa, não se afasta, te respeita e te encoraja a seguir seus objetivos. O meu único medo é de que não respeitem minha identidade de gênero se, porventura, um dia eu morrer antes de realizar todos os procedimentos da minha transição, escrevendo o meu falecido nome (nome de nascimento) na lápide.

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